terça-feira, 30 de junho de 2009

OS MALES DO MUNDO

O velho estava acuado, sem forças para lutar. Nem ao menos tinha força para gritar e pedir ajuda. Foi tão debilitado pela vida, e pelo acidente recente, que não reagia. Eu poderia matá-lo com facilidade, mas ele ainda não deveria morrer. Eu não tinha provas, nem confissões. Só tinha minha antipatia pelo homem e suspeitas. Pressionei o velho: - Confesse, morra com a consciência tranqüila. O que você fez de sua vida?

O homem ficou confuso, balbuciando algumas palavras sem nexo. Eu coloquei minha mão direita no seu peito, próxima ao pescoço. – Você está velho e doente, eles acreditarão que morreu durante o sono. Confesse e se salve. Sua vida, pela verdade. Por que sua filha tem tanto medo?

O velho esbravejou: - Eu nunca a machuquei, só a protegi. Sempre a guardei de todos os males do mundo.

Ele continuava mentindo e eu, impaciente. Peguei o travesseiro e deitei contra seu rosto.

segunda-feira, 29 de junho de 2009

PROCEDIMENTO PADRÃO

O hospital ficou tranqüilo depois da meia-noite. Não havia enfermeiros andando nos corredores e os plantonistas, tentavam dormir. A porta do quarto estava fechada e as luzes apagadas. Só a claridade do corredor, escapando pela fresta da porta, iluminava os pés das duas camas. O velho dormia ao meu lado, ou pelo menos fingia estar. Levantei, coloquei a tipóia no meu braço esquerdo e fui até a sua cama, sorrateiramente.

Aproximei-me do corpo do velho, que à meia luz, parecia morto. Ele percebeu minha aproximação e perguntou-me, com dificuldade: - Não se aproxime, seu maldito. Você tentou me matar no pântano, queria que eu me afogasse. Quem é você?

Eu sorri e gracejei: - Eu sou o passado que busca pela verdade.

O velho se calou. Por isso, continuei: - Eu sei tudo sobre você, Fritz. Sua vinda para o Paraguai, sua mulher morta e sua filha. Você tem razão quando diz que eu tentei te matar naquele pântano. Ou você irá argumentar que não merece morrer?

sexta-feira, 26 de junho de 2009

OBSERVAÇÃO

Cheguei à estrada depois de me arrastar para fora do charque, imundo e furioso. Meu braço já devia estar infectado com alguma doença tropical e eu estava ali, perdido no meio do nada. Um caminhão surgiu no horizonte, me viu e parou para ajudar. O caminhoneiro ajudou Ana a retirar o seu pai da água fétida e os dois carregaram o velho até caminhão. Como ela ainda tinha forças, eu não sei.

Depois de quase uma hora de viagem até o hospital, fomos atendidos na unidade de emergência em Assunção. Engessaram meu braço e me colocaram em observação por 24 horas. O velho não havia sofrido nada, só tomou alguns antibióticos por prevenção. Ana que no começo se mostrou tão calma, ficou tão nervosa com a atenção dos médicos e policiais, que quase teve um surto. Ela primeiro emudeceu e depois chorou copiosamente. Os médicos tentaram acalmá-la, mas acabaram tendo que lhe dar uma dose generosa de tranqüilizantes.

Eu e o velho fomos colocados no mesmo quarto, em observação.

quinta-feira, 25 de junho de 2009

O PÂNTANO


O carro seguia constante pela estrada. Ana não descuidava da direção, apesar do nervosismo. Consultava os retrovisores e a velocidade maquinalmente, porém minhas reclamações abalavam seus pensamentos. O velho gritou, pedindo que respeitasse sua filha. A mulher, ouvindo o tom áspero do pai, se contraiu com medo, mais aflita do que com os meus gritos raivosos. Eu a pressionei: - Você devia dirigir olhando para frente e não para o banco de trás.

Ela se virou para mim. Seus olhos perderam vagarosamente o torpor, deixando-os renascer. Ana tentou dizer alguma coisa, mas sua fala não veio, pois acabou se assustando com um caminhão que vinha no sentido contrário. O carro saiu da estrada, destruiu uma cerca e acabou no charco, verde e lamacento, que cercava a estrada. O impacto com a água me atordoou, mas felizmente o cinto de segurança me protegeu. Tirei-o e procurei o corpo de Ana ao meu lado. Ela tentava se soltar ao mesmo tempo em que buscava salvar o pai. Na sua confusão, entre a própria vida e a do velho, ajudei-a se livrar do cinto e a empurrei para fora do carro, para salva-la. Ela gritava pelo pai enquanto saíamos pela porta, mas eu lhe disse: - Nós não vamos conseguir alcançá-lo, o carro está afundando rápido. Precisamos sair daqui.

Meu braço esquerdo doía e nossos pés mal tocavam o fundo lamacento do charque. Sem poder usá-los, lutei mesmo assim pela minha vida e a de Ana. Ela conseguiu desvencilhar-se do meu braço e voltou ao carro, tentando salvar o pai. Para nossa surpresa, ele já havia conseguido se livrar do cinto e com a ajuda da água, vinha boiando em direção a porta. Ana o ajudou a sair, enquanto eu tentava sair daquele pântano.

quarta-feira, 24 de junho de 2009

BATIDA

Fui atropelado esta manhã pelo carro de Ana. Eu voltava de uma das minhas caminhadas, quando ela, trazendo seu pai de um exame médico, bateu em mim. Cai, estatelado no chão, perto da entrada de sua casa. Ana saiu do carro e veio ver se eu estava bem. Foi a primeira vez que ouvi sua voz, e ela era doce e tímida. Ficou preocupada comigo e se ofereceu para me levar até a cidade. Quando cai, senti uma dor no braço esquerdo, onde havia se apoiado todo o meu corpo. Ela me tocou e constatou o pior, eu precisava realmente ir a um hospital. Achei melhor aceitar o seu socorro para ir logo. Entrei no carro, do lado do carona. O pai de Ana estava sentado no banco de trás, bem atrás de mim. Ela apresentou o velho. Eu me virei para cumprimentá-lo, e ele acenou com cabeça: - Mucho gusto!

Ana não se apresentou, por isso tive de perguntar seu nome. Ela respondeu, envergonhada. Depois das apresentações, os dois, nem pai e filha, falaram mais nada. Eles não me fizeram uma pergunta, nem trocaram nenhuma palavra. Ana dirigia concentrada e eu não conseguia ver o velho. Eu decidi arriscar e puxei conversa. Comecei a perguntar sobre a casa e o carro, mas ela respondia monossilabicamente, sem dar espaços para conversas. Como ela não respondia, fui mais agressivo. Segurei meu braço quebrado e perguntei se não tinha me visto na calçada caminhando. Ana ficou nervosa, pediu desculpas. O pai dela se inquietou no banco de trás. Parece que saíram do coma.

terça-feira, 23 de junho de 2009

NOITES PAULISTANAS

Apesar de eu reclamar das noites, tenho dormido bem, um verdadeiro sono dos justos. Júlia foi embora quando apertei o gatilho em São Paulo. Ela não povoa mais meus sonhos, só minhas lembranças. Senti que a justiça foi feita e seu espírito podia descansar em paz. Eu fui o único que me levantei por Júlia, ainda que não tenha sido em vida. Mas lutei por ela, provei que não era descartável. Minha consciência está tranqüila, e não devo mais nada à garota. Depois que fiz justiça com o monstro que a assassinou, e perdi minha liberdade por isso, vou fazer o que quiser com o resto da minha vida. E minha vida ia para Bolívia, lutar.

Eu espero o encontro com o agente boliviano, membro da resistência. Decidi aumentar meus exercícios físicos e diminuir o número de cigarros. O momento é de grande concentração, não posso me permitir errar.

Durante as minhas caminhadas ainda observo a casa de Ana. Nenhuma novidade, apesar de eu ter aumentado a minha atenção. Perguntei sobre a família dela para algumas pessoas, muito discretamente, mas ninguém sabia de nada. A clausura de Ana era total, um verdadeiro cárcere monástico.

segunda-feira, 22 de junho de 2009

NOVIDADES


Boas notícias! Benites me ligou esta manhã confirmando o interesse dos bolivianos pelos meus serviços. O coronel se gabou, dizendo que havia falado muito bem de mim. Eu agradeci e perguntei os pormenores.

Um encontro seria necessário para fechar o acordo. Benites e os bolivianos acharam melhor acontecer no Paraguai, em San Bernardino. Eles viriam até mim e acertaríamos a história toda. Acho que será na próxima semana, mas eles ainda avisarão. Paciência é necessária agora, para manter a cabeça no lugar. A revolução se aproxima, eu posso sentir. As massas ao fundo, gritam e pedem as cabeças dos vermelhos. Uma chance de felicidade nasce em mim.

sexta-feira, 19 de junho de 2009

ESPERANDO

Os finais de semana em San Bernardino são mais tristes nessa época do ano. O hotel fica quase vazio, com apenas três funcionários trabalhando. Às vezes surgem outros hóspedes, mas parecem fazer à mesma coisa, se esconder. Não querem saber de conversa, se trancam nos quartos e só saem para caminhar perto do lago. Eu procuro não enlouquecer, lembrando sempre das promessas da Bolívia. Em breve, eu sairei desse inferno pacífico, rumo a um caldeirão de problemas. A idéia me conforta e dá força para agüentar meus dias finais em San Bernardino.

Ainda rondo a casa de Ana. Desta vez vi o carro da família, um Ford da década de setenta. Não observei muito mais, para não levantar suspeitas. O povo das cidades pequenas fala demais e estão sempre observando. A última coisa que quero é me tornar alvo de suspeitas da população local. Apesar disso, Ana e seus mistérios não saem da minha cabeça. Conversando com os moradores não consegui descobrir muito mais, apenas que sua mãe morreu ainda na década de 70. Depois disso, ela foi para a faculdade e passou longos anos no estrangeiro. Quem me contou a história de Ana foi a minha principal fonte na cidade, o gerente do hotel. Ele era o único que sabia os detalhes mais íntimos dela, mas ainda sim,eram poucos.

Eu, com essa minha mania de tentar entender os outros, passava horas tentando decifrar a vida de Ana. Seria o amor tão grande assim entre os dois, para fazer uma filha desistir da vida no estrangeiro para cuidar do pai? Ou seria outra coisa que a fazia esquecer que era uma mulher bonita e desejável, mofando dentro de casa com um pai semimorto?

quinta-feira, 18 de junho de 2009

OLHOS SINCEROS

Animado com a possibilidade de ir à Bolívia, ajudar na “liberação” de Santa Cruz, passei a ler tudo sobre o país. Comprei jornais, usei a vagarosa internet do hotel e até consegui alguns livros sobre a guerra entre o Paraguai e Bolívia. A situação no país piora a cada semana. Evo Morales já descobriu um plano para assassiná-lo, comandado pelos políticos do departamento de Santa Cruz. O plano usava assassinos estrangeiros, o que gerou uma trapalhada internacional. O governo boliviano mandou tropas para o estado, supostamente para reforçar a segurança na fronteira com o Brasil, depois que uma vala com seis brasileiros mortos foi achada. A Bolívia está à beira do abismo, com o separatismo e as potências locais empurrando-a cada vez mais para a beirada.

Não parava de chover em San Bernardino e o céu permanecia sempre cinzento. Apesar de o inverno no Paraguai estar no ápice, à temperatura não abaixou muito. O mormaço tropical não deixava esfriar os calores da terra. Por isso, adotei um guarda-chuva e uma jaqueta leve em minhas caminhadas. Passo na frente da casa de Ana todos os dias. Eles moram não muito longe do hotel e, apesar de eu passar por lá quase todas as manhãs e em algumas tardes esporádicas, nunca consegui vê-los. Nem o pai nem a filha. Os locais disseram que eram sós, vivendo em uma casa simples sem nenhum empregado. Em uma vendinha próxima, a dona do lugar me ofereceu docinhos locais e um pouco mais da história de Ana. Segundo a velha índia, ela nunca saia de casa sem o pai e comprava na venda ocasionalmente. Tinha um carro velho, que usava para ir à cidade de vez em quando. Falava mal o espanhol, com um forte sotaque alemão.

Comprei um doce de leite e continuei minha caminhada sem rumo. Pensava em Ana, é claro. Ela tinha uma mãe morta e um pai quase lá. Sempre viveu por aqui, mas mesmo assim, nem consegue falar o idioma local. Os olhos de Ana não me enganaram naquele dia à beira do lago. Eles prometiam mistério e foram sinceros.

quarta-feira, 17 de junho de 2009

PERGUNTAS E MENTIRAS

Resolvi incluir a casa de Ana no percurso das minhas caminhadas diárias. Por mais que eu tentasse não me envolver, minha consciência não me deixava em paz. E se seu pai fosse realmente um criminoso de guerra? Não foi difícil descobrir o endereço da família com o gerente do hotel, que também me contou o nome do pai: chamava-se Fritz. Ele guardava segredos, sua velhice decrépita era prova. Ninguém tão velho poderia ser inocente. Ainda mais ele, que mal podia respirar. Não sou religioso, mas seu estado devia ser uma punição divina pelos crimes que não pagou na terra.

Fritz poderia ter falsificado seu nome e inventado uma nova identidade. Fugir de sua vida antiga na Alemanha teria sido a parte fácil do acobertamento de seus crimes, o difícil seria escondê-los pelo resto de sua vida. Eu mesmo usava um nome falso no hotel. Havia me registrado com nome de Alberto Aparecido do Nascimento e pago em dinheiro, para não deixar rastros. Inventei também uma história de cobertura, dizendo aos funcionários do hotel que era apenas um fazendeiro viúvo de Corumbá que estava passando uma temporada em San Bernardino, onde eu e minha falecida esposa havíamos tido nossa noite de núpcias. Contava aos funcionários sobre meu casamento feliz e de meus filhos ingratos, que estavam sempre tentando me roubar. Os empregados sentiam pena de minha história e não desconfiavam da mentira. Simpáticos, criticavam os filhos da nova geração, que não respeitam mais os pais. – Maldita juventude, repetiam eles.

No entanto, sabia que essa história não se sustentaria por muito tempo. Logo teria que me mudar também, pois as pessoas desconfiam, mesmo quando convencidas. Fritz deve conhecer essa verdade, por isso vive recluso. A história permanece nebulosa, mas só uma pergunta realmente me interessa: Ana é uma filha caridosa ou uma prisioneira?

terça-feira, 16 de junho de 2009

UM OLHAR ENIGMÁTICO

As conexões de internet no Paraguai são muito ruins. Consultar um simples e-mail é um ato de paciência e controle do temperamento. A vontade é de socar o único computador do hotel que não oferece nenhuma velocidade. Apesar disso, o tédio e a curiosidade me fizeram pesquisar um pouco mais da história de San Bernardino. Não havia muito, a não ser um link sobre criminosos de guerra nazistas que tinham fugido para a América do Sul. Fiquei surpreso ao saber que até o carrasco Mengele tinha passado algum tempo na cidade. Desliguei o computador, mas fiquei com a história na cabeça.

Não demorou muito para eu lembrar da mulher que passeava com seu pai à beira do lago. Divaguei e imaginei o velho fugindo do julgamento de crimes de guerra, escapando de Berlim para a pacata San Bernardino. O pai de Ana tinha uma expressão de superioridade em seu rosto, mas não era nojo, era reprovação à cultura local. Uma cultura que eles não achavam adequada aos seus modos civilizados, nórdicos, puros, ou qualquer outra bobeira racial.

Ana ainda me intrigava, seu olhar era poderoso demais para ser esquecido. Ele penetrou em mim e ficou guardado. Antes de sair desse lugar, gostaria de conversar com ela, ouvir sua voz. Será que seria tão poderosa quanto seu olhar?

domingo, 14 de junho de 2009

PROCURANDO POR UMA NOVA VIDA

Os dias parecem mais longos em San Bernardino. Faço exercícios, leio e dou longas caminhadas em volta do lago, porém estou sempre entediado e com tempo sobrando. Tento matar as horas de todas as formas, mas elas resistem. Procuro arranjar assuntos com os funcionários do hotel e até com estranhos na rua, só para não enlouquecer, no entanto, não se pode conversar para sempre sobre as futilidades do cotidiano.

Estive pensando em me mudar depois de uma conversa que tive com Benites. Eu liguei só para bater papo e esquecer do marasmo, mas ele acabou revelando um telefonema que poderia mudar minha vida. O coronel recebeu a ligação de um boliviano que representava o departamento de Santa Cruz, uma região rica e separatista da Bolívia. Ele disse que o homem lhe ofereceu um trabalho para treinar a militância oposicionista ao presidente Evo Morales. Os governantes do departamento pensavam alto: milícias armadas e até o assassinato do chefe de estado.

Benites recusou a oferta, por ser muito perigosa, mas eu me ofereci para o emprego. Ele achou graça, mas quando percebeu que eu falava sério, tentou me dissuadir. Avisou que era arriscado demais e que os golpistas estavam destinados ao fracasso. Eu insisti. O coronel me aconselhou: - Vargas, você deve ter enlouquecido depois que ficou velho. Justo você, que sempre soube apostar nos vencedores. Eu te digo a verdade, esses golpistas vão se dar mal e se te pegaram junto com eles... Aproveite o resto de sua vida, fique em San Bernardino.

Não me importei com seus avisos e pedi que ele me arrumasse o emprego. Benites, contrariado, concordou em me ajudar. Prometeu ligar quando tivesse novidades.

sexta-feira, 12 de junho de 2009

CAMINHANDO PARA O LAGO


A idéia de morrer nesse lugar, se tornou mais triste após um acontecimento. Estava conversando com o gerente do hotel, na frente da hospedaria, quando uma bela mulher conduzindo um idoso em uma cadeira de rodas passou por nós, rumo ao lago. Os dois pareciam estrangeiros, mas ela dirigia o velho pela rua com familiaridade, como se fizesse o caminho há muitos anos. Quando os dois desapareceram na curva, rumo ao lago, o atendente fofocou a história da mulher e de seu pai. Eram alemães que chegaram depois da segunda guerra mundial, procurando abrigo entre os colonos germânicos locais. A família não morava muito longe, mas era discreta e poucas vezes veio ao hotel. O velho era médico e clinicou na região por muitos anos até sua mulher morrer de câncer. Depois da tragédia, ele e sua filha se tornaram reclusos. O gerente comentou gracejando: - Eles reapareceram depois que o pai ficou velho demais para andar. Ele resolveu se mudar definitivamente para San Bernardino para morrer, mas nunca morre. È um vaso ruim.

Com um sorriso malicioso, o gerente mostrou sua animosidade com a família. Eu percebi, mas preferi não entrar no assunto e continuei a conversa em outra direção até ele resolver ir trabalhar. Eu fui até o lago, esperando ver a mulher novamente. Encontrei o velho e sua filha calados, observando as belezas do lago em silêncio. Ela me viu chegar e, nesse instante, trocamos olhares. Fiquei disfarçando, esperando que algo acontecesse. Tive a sensação boba de que algo mágico poderia acontecer e que talvez, ela falaria comigo. A mulher tinha belos olhos azuis, profundos e misteriosos. Um longo cabelo louro e talvez 50 anos. Eu esperei, mas ela virou a cadeira de rodas do pai e foi embora. Eu continuei observando o lago.

Houve uma época em que a felicidade, mesmo no meio da violência, me parecia possível. Agora, velho e repousando em um lugar pacifico, nunca fui tão descrente da alegria. Estou sozinho, exilado e com uma saúde de ferro. Nem a morte quer me fazer companhia.

quinta-feira, 11 de junho de 2009

SOSSEGO MORTAL

O hotel em que estou hospedado é muito interessante. Foi construído em 1888 e até seus móveis guardam muitas histórias. O atendente, em um momento de descontração e tédio, me mostrou a curiosa atração da suíte de lua de mel da hospedaria: um armário onde os casais de várias gerações gravaram juras de amor. O móvel está todo retalhado, com inscrições até dentro das gavetas. Passados tantos anos, muitos dos casais eternizados já estão mortos, ou separados, porém seu amor ficou gravado na madeira, para os supersticiosos das novas gerações.

O atendente também mostrou as fotos da família que construiu o hotel. Eram alemães que ganharam muito dinheiro no Paraguai e resolveram investir no sossego que o lugar podia oferecer. Os paraguaios gostaram da idéia e começaram a construir casas de veraneio no lago, junto às casas dos alemães. Seguiram o progresso e a suposta civilização. No entanto, as fotos me chamaram atenção foram as de uma mulher, loira e alta, que posava ao lado de aviões, armas e tigres. Uma deusa nórdica perfeita, descendente de alemães, mas nascida no Paraguai. Segundo o atendente, ela foi enfermeira durante a guerra do Chaco, entre Paraguai e Bolívia, e também pilotou aviões e criou tigres. Ele disse que a mulher aventureira enlouquecia os homens, porém nunca aceitou ser controlada. Morreu sozinha, abraçada com seus dois tigres de estimação. Perguntei ao atendente: - Ela experimentou uma vida plena, era livre, mas será que foi feliz? Ele respondeu sorridente: - Devia ser, porque morreu louca e sozinha, mas ainda sim, cheia de dinheiro...

A história dela me parecia familiar demais e vi minha vida alinhada com a sua. Será que também morrerei sozinho e louco, nesse lugar pacifico e belo, recebendo uma pensão pelos meus tempos de serviço na inteligência brasileira?

quarta-feira, 10 de junho de 2009

O HOTEL DOS ALEMÃES


A viagem para o balneário não foi longa. Peguei um ônibus na rodoviária de Assunção e um táxi velho até o hotel, à beira do lago. O coronel Benites me recomendou uma hospedaria muito antiga no balneário. Existe desde o final do século 19, quando a região ainda era dominada por colonos alemães. O hotel tinha a arquitetura germânica e seu nome desenhado em letras góticas. O clima nublado, a vegetação e o ar me lembraram o bucolismo rural da Europa. Os alemães encontraram um belo esconderijo neste lugar, um final de mundo, escondido no meio de uma floresta.

Já estou aqui há alguns dias, já instalado e com algum reconhecimento da região. San Bernardino é um balneário para os ricos de Assunção. No verão eles lotam o lugar, cheio de mansões e restaurantes da moda. Mas agora, no nublado inverno paraguaio, ninguém aparece e os hotéis e índios, que ficam vendendo bugigangas para os turistas, ficam à toa. O lugar, apesar do atual clima, é bonito. Muito calmo, tanto que à noite, eu posso ouvir as ondas do lago quebrando nos barrancos e os insetos fazendo barulho no mato.

Desde a minha fuga de São Paulo, não me sentia tão seguro. Benites estava certo, a capital poderia me denunciar. Aqui escondido, longe da agitação de Assunção, me sinto protegido, guardado pela distância com a civilização. Tão distante que às vezes parece que o tempo para e os dias não passam nunca. Confesso que estou um pouco entediado e logo terei que me ocupar com algo.

terça-feira, 9 de junho de 2009

O PECADO DOS OUTROS


Foi a providência que me fez encontrar com o coronel Benites, dirigindo um táxi em Assunção. Uma noite, voltando de um bar no centro da cidade, peguei um táxi rumo ao meu hotel. Falando um espanhol tranqüilo, o taxista moveu o carro. Conversamos um pouco, até que reconheci sua voz. Quando ele se virou, tive certeza que era o coronel que eu tinha conhecido durante os anos do Condor na América do Sul. Benites me reconheceu e ficou alegre com o encontro. Enquanto ele me levava ao hotel, lembramos dos velhos tempos e especialmente de uma viagem a Buenos Aires nos anos 70. Naquela época, os serviços de inteligência dos países sul-americanos cooperavam e abatiam, um por um, os grupos comunistas da região. Caíram todos, até os que não eram a favor da violência.

Na época do regime militar de Stroessner no Paraguai, o coronel vivia confortavelmente com sua família em Assunção, sendo bem pago para atuar no combate aos inimigos do ditador. Quando militares derrubaram o governo, Benites percebeu que Stroessner não iria sobreviver e por isso, resolveu ajudar os golpistas. Mas ele não acabou sendo recompensado pelo ato, como me contou: - Pensava em ser general, viver tranqüilo o resto da vida. Uma boa aposentadoria e uma casa no interior.

Infelizmente sua traição compensou e os golpistas resolveram o afastar. Os militares paraguaios ofereceram uma dispensa honrosa e sua aposentadoria, como coronel. Hoje em dia, ele me explicou, dirige o táxi para terminar de criar os filhos e também para fugir das cansativas conversas da esposa. Quando chegamos ao meu hotel, o coronel saiu do carro para apertar minha mão. Não cobrou a corrida e me deu um cartão seu, para caso eu precisasse de alguma coisa. Antes de partir, disse, baixinho: – Se está aqui para se esconder, está fazendo errado...Vá para longe, meu amigo. Na cidade seus inimigos ainda podem encontrá-lo. Devia pensar em um lugar calmo, como San Bernardino.

segunda-feira, 8 de junho de 2009

RECOMEÇO

Tenho medo das noites neste país. São calmas demais, sem trânsito. Aqui, o silêncio noturno inspira reflexões e traz a tona memórias antigas. Mesmo em Assunção, onde me escondi por quatro meses, tinha essa mesma impressão do Paraguai. A capital é uma cidade agitada, mas ainda assim sua noite é serena, reflexiva. O tempo parece cessar.

Aqui em San Bernardino, as noites são piores. Estou à beira do lago Ypacaraí cercado de árvores, silêncio e bucolismo. A paisagem e o tédio convidam as lembranças, mas tudo que quero é esquecer e recomeçar uma nova vida, livre do passado. Quem me recomendou a mudança foi um velho amigo que encontrei por acaso, nas ruas da capital. Ele me aconselhou a vir ao balneário de veraneio San Bernardino, pois o inverno já chegou ao Paraguai e, nessa época do ano, as casas da região ficam esquecidas, esperando pelo próximo verão. Seria um lugar tranqüilo, onde ninguém me reconheceria.

Eu decidi aceitar o conselho e me afastei da capital. Arrumei minhas malas e vim para o balneário procurando me esconder melhor, mas não sabia que aqui estaria totalmente a mercê de minhas lembranças. Tenho medo das noites no Paraguai porque, com elas, vem a solidão.