segunda-feira, 30 de março de 2009

UM LUGAR ESCURO E TRISTE

Vesti uma roupa simples e fui ao encontro dos pais de Júlia. Peguei a caixa que tinha preparado, chamei Valdir e parti para a Aclimação. Cheguei lá umas sete horas da noite e a rua ainda fervilhava de carros. Vi o cortiço todo aceso ainda na esquina quando desci do táxi. Andei até a porta do lugar, que estava aberta, mas havia três moradores em volta dela. Passei pelos homens mal-encarados e fiquei satisfeito com meus instintos que me disseram para trazer a arma. Entrei e logo ouvi a barulheira do lugar, os rádios ligados, a gritaria, os risos. A tinta descascada das paredes dava um aspecto decrépito ao cortiço, que parecia podre por dentro. Havia um corredor enorme que, no final, dava para uma escada. De uma das portas, todas identificadas com pequenos números desenhados na porta, saiu uma mulher idosa. Ela me olhou surpresa e veio na minha direção. Eu perguntei a ela. – Por favor, onde posso encontrar o seu Inair e a dona Creusa?

Ela me encarou e explicou. – Eles moram no andar de cima, no 15. È só subir as escadas.

Eu agradeci à mulher e subi as escadas escuras. O andar de cima era igual ao de baixo, sujo e feio. Procurei a porta dos pais de Júlia, que acabou sendo a primeira do andar. Bati na porta e uma mulher atendeu. Era baixa e barriguda. Usava uma bermuda e camiseta regata, com um par de chinelos de dedo. Me dirigi a ela. – Por favor, você é a dona Creusa?

Ela acenou que sim com a cabeça e ficou esperando que eu falasse. Eu continuei. – Desculpa incomodar a senhora, mas vim trazer algo, algo de sua filha Júlia.

A mulher ficou imóvel por alguns instantes, me encarando como se eu fosse um alienígena. Eu comecei de novo. – Eu trouxe algumas coisas que não jogaram no lixo, eu achei que a senhora poderia querer.

Creusa disse, com medo. – Moço, pelo amor de deus, nem fala esse nome aqui. Se meu marido souber que você está aqui, ele vai ficar louco. Leva essas coisas embora.

Ela colocou as mãos na porta. Eu disse, antes que fechasse. – Mas são as coisas de sua filha. Ela me pediu para vir aqui entregar.

A mulher parou. Seus olhos tentavam disfarçar a emoção, mas ela estava perturbada. Segurou a porta com mais força e disse. – Agora eu não preciso mais disso, moço. Joga fora, que eu já perdi minha filha faz tempo.

Eu a impedi de fechar a porta de novo, falando. – Foi seu último desejo. Eu sou síndico do prédio onde ela morava e fui encarregado de fazer esse favor, por Júlia mesmo.

A mãe de Júlia parou para ouvir o que eu tinha a dizer. De dentro do apartamento vinham gritos masculinos, e eles se aproximavam. Um homem de bigode, baixo e de meia idade apareceu e empurrou a mulher. Foi logo falando alto. – Quem é o senhor e o que você quer aqui a essa hora?

Ele se virou para a mulher e perguntou. – E você, o que estava falando com ele?

Era o pai de Júlia, com certeza. Só de ver o medo da mãe e o jeito que ele trata as pessoas, pude perceber porque a garota não queria ficar aqui perto dele. Falei. – Seu Inair, eu sou síndico do prédio onde sua filha Júlia morava, vim trazer as coisas dela para vocês.

Os olhos do homem pareciam saltar de tanto ódio logo que ouviu o nome da filha. Ele respondeu, irado. – Olha aqui moço, vai embora e leva essas coisas com você. Daquela safada eu não quero nada.

Eu disse. – Por favor, seu Inair, foi o último desejo dela. Pouco antes de desaparecer ela me pediu para fazer esse favor.

Ele se irritou. – Tira essas porcarias daqui agora. Tá fazendo o favor por quê? Era amante dela?

Não retruquei. – Olha, seu Inair, eu vou deixar isso aqui na porta e depois vocês vêem o que querem fazer. Eu vim aqui fazer um favor à sua falecida filha.

Abaixei-me e deixei a caixa. Levantei devagar e ele continuava parado, olhando. A mãe de Júlia estava colada na parede, com olhos assustados. Ela ficava parada, se retorcendo a cada grito do marido, apavorada. Eu fui saindo e disse. – Desculpa incomodar.

Eu desci as escadas e ele bateu a porta. Os gritos continuaram, só que agora abafados. Ainda eram altos e quem iria pagar a conta da irritação do pai de Júlia era sua esposa. Pobre mulher.

domingo, 29 de março de 2009

CASARÃO MAL-ASSOMBRADO

Antes de ir conversar com o namorado de Júlia resolvi visitar os seus pais. Alguma coisa em seu passado havia perturbado o presente. Na verdade, tinha o destruído. Peguei o endereço no prontuário e fui dar uma primeira olhada. Os pais moram em um cortiço, perto do hospital Beneficência Portuguesa. É um casarão amarelo grande, feio e deprimente, que dá as costas para a Avenida 23 de maio. Confirmei o endereço e entrei em um bar ao lado até decidir o que fazer. Na verdade, esperava ver as feições de Júlia neles. Mas é claro que isso não aconteceu. Fiquei ali no bar esperando por uma idéia, um jeito de me aproximar. Pedi um uísque e depois outro. No terceiro, vislumbrei algo.

Precisava reconciliar a família de Júlia. Parti rumo ao centro e comprei umas roupas, jóias baratas e coisas de mulher. Também comprei uma caixa bonita e coloquei tudo dentro. Amanhã vou visitar os pais de Júlia.

sexta-feira, 27 de março de 2009

A ARTE DE FINGIR

Precisei de dois dias para me preparar para a conversa com a amiga de Júlia. Fiquei pensando em como me aproximar, mas nada parecia plausível. Decidi ir como policial, inventar uma história, um nome, tudo para fazê-la falar. Preparei uma carteira policial falsa e vesti um terno. Levei a arma e coloquei na cintura, para tornar a farsa mais real para Maria, a colega de Júlia no supermercado. Com tudo pronto, resolvi ir ao lugar já à noite, para ter mais tempo com ela. Esperava encontrá-la de saída do turno.

O mercado era grande e estava cheio de gente comprando. Falei com um atendente e perguntei por Maria. Ele disse que ela deveria estar se trocando. Pedi para chamá-la. Após alguns minutos ela apareceu, pronta para ir embora. Confirmei seu nome e me identifiquei como policial. Expliquei que estava ali para saber do caso de Júlia. Maria concordou em conversar, mas não no supermercado. Fomos até um bar na esquina e nos sentamos. Citei os nomes dos investigadores do caso de Júlia para ela ficar mais confiante em minha história. Maria começou a falar devagar. Contou-me que Júlia havia conseguido o emprego há cerca de um ano e as duas logo ficaram amigas. A garota era do tipo fechada e algumas coisas ela não comentava nem com Maria. Eu perguntei sobre a família de Júlia e ela disse que não sabia muito, mas que a garota não queria nem saber deles. Ela tinha quase certeza que eles não tinham nenhum contato.

Mencionei o namorado. Maria disse que já tinha visto ele algumas vezes, quando ele vinha ver Júlia no supermercado. Ela comentou. – Acho que ela estava feliz. Conheceu ele em um culto da igreja evangélica. Os dois estavam namorando há um tempo, acho que começaram a sair na mesma época que ela mudou para cá. Não falava muito dele, mas sei que eles tinham um relacionamento muito respeitoso, até por causa da vida na igreja.

Eu a interrompi. – Mas eles brigaram, não é?

Ela afirmou sim com a cabeça e disse. – Eu não sei o que aconteceu. Eles estavam bem em um dia e no outro, sei lá. Depois disso, ela ficou triste e deprimida. Eu tentei saber o que tinha acontecido, mas ela não contava. Um dia a peguei chorando no estoque. Ela estava debruçada em cima dos sacos de feijão, tentando limpar as lágrimas. Eu fui lá e perguntei bem séria o que tinha acontecido. Ela começou a chorar e disse que ele tinha terminado com ela, por um motivo que não deveria importar mais. Ela tentou falar com ele algumas vezes, tentando uma reconciliação, mas não teve jeito. Eu dei a maior força para ela, disse que ela deveria lutar pelo amor. Ela se animou e depois disso começou a correr atrás dele sempre. Nem parecia a Júlia que era toda tímida. Começou a dizer que ninguém iria tirar a felicidade dela, agora que tinha achado. Mas aí ela sumiu e ninguém sabe o que aconteceu. A polícia até agora não a achou.

Eu abaixei a cabeça e fingi não escutar a alfinetada, como um policial de verdade faria. Perguntei se fora o namoro, havia alguém atrás dela, um pretendente não correspondido. Ela afirmou que não. Perguntei o motivo da separação dos namorados. – Olha, não sei. Ela saía pela tangente toda vez que eu perguntava. Dizia que era uma bobeira e nunca falava o quê.

Fiquei calado por alguns instantes. Ela disse que tinha que ir embora e eu a deixei ir. Antes de me deixar ela perguntou. – Por que você veio aqui me perguntar isso tudo de novo? Tudo que eu falei já tinha dito para os outros policiais.

Eu respondi. – Eu estou revendo o passado, tentando preencher algumas lacunas deixadas pelos meus colegas. Às vezes, só é preciso distanciamento e tempo para ver as coisas como realmente são.

quarta-feira, 25 de março de 2009

OS ARQUIVOS DO SUBMUNDO

O delegado me ligou hoje e disse que havia juntado as informações. Ele as mandou para minha casa, por meio de um motoboy. As pastas sobre os casos eram finas, mas não fiquei nada surpreso com isso. Não esperava um grande trabalho de investigação sobre a vida de duas mulheres pobres. Almocei, fiz uma grande jarra de café e me sentei para analisar os documentos na mesa da sala.

Decidi começar pelo caso de Júlia. Abri a pasta e me veio o passado. Tenho muita experiência em analisar informações, passei toda minha vida profissional fazendo isso. Sempre fui bom em juntar pedaços de relatórios e montar um cenário para meus superiores. Quando fui subindo de graduação tive que observar, além dos relatórios, as pessoas. Ouvia tudo,não revelava nada.


Quando me concentrei na pasta, mergulhei no universo particular de Júlia. Foi como olhar sua vida em um microscópio, fria e duramente. Ela tinha 23 anos. A garota não era do nordeste e tinha nascido em São Paulo, em um bairro da região norte. Tinha os pais vivos e eles moravam na Aclimação. Os policiais os procuraram, mas eles não sabiam dela fazia uns dois anos, segundo o relatório dos investigadores. Ela havia saído de casa e nunca mais deu notícias. Os policiais foram falar com uma colega de trabalho dela, no supermercado. A amiga declarou que Júlia tinha um namorado e que eles haviam brigado pouco antes de ela sumir. Os policiais o entrevistaram, um mecânico que trabalha em uma oficina aqui do centro. Ele apresentou um álibi convincente para os policiais e não foi mais incomodado. Desde então o caso está aberto, mas vai prescrever antes que alguém na polícia faça algo mais para investigar, principalmente sem ninguém reclamar.

Fechei a pasta de Julia e me levantei. De repente ela era uma garota diferente. Mais nova do que eu imaginava e com história mais perturbada. Fui até a janela e observei um desses mendigos que dormem na rua, protegido pela marquise. Onde ele havia errado e acabado na rua? Ou será que não era sua culpa?

Fumei um cigarro e fui olhar o outro caso, o da mulher morta em 2007. O assassinato aconteceu em julho, de certo um dia frio. A mulher tinha 34 anos e era prostituta perto da Praça de Sé. Ela morava em um cortiço nas redondezas até que um homem entrou no prédio e a seqüestrou. Os vizinhos ouviram a gritaria, mas não se meteram. O homem, descrito como de estatura média e moreno, a colocou dentro de um carro e os dois desapareceram na noite. Ela ficou sumida por quase um mês até que uma forte chuva revelou seu corpo, que estava enterrado no extremo da zona leste de São Paulo. O corpo foi identificado, mas o assassino não.

A história das duas era parecida, mas Julia não era prostituta. A mulher morta, segundo a ficha, era viciada em drogas e pode ter sido morta por vários motivos. Mas talvez tenha sido o mesmo homem, treinando e adquirindo experiência. Talvez caçando fora de padrão, procurando algo novo, mais sórdido. No caso de Júlia, o assassino poderia estar rondando a região e simplesmente se deparado com ela. Com alguns dias de vigilância ele podia realizar o seqüestro. O rapto foi bem organizado, por isso ele deve ter entrado e conhecido o prédio antes. De certo, algum vizinho descuidado o deixou entrar. Mas o mais difícil não é imaginar o como, mas o porquê. O que ele teria visto na garota?

Essa pergunta fica para depois. Primeiro tenho que ter certeza que o namorado não a matou. Não posso descartar essa possibilidade, pois a maioria dos assassinatos é pessoal. Se Júlia e o namorado tivessem brigado, havia um motivo para o crime. Decidi recomeçar as investigações pela colega de Júlia no supermercado.

segunda-feira, 23 de março de 2009

O PASSADO VOLTA

Procurei a delegacia da Polícia Civil da região, onde a síndica havia feito a queixa do desaparecimento de Julia, para saber quem eu conhecia dos velhos tempos, da época em que a policia colaborava com o serviço. Descobri que o delegado titular era um velho conhecido meu, alguém com muita história nas costas, para a minha sorte. O delegado tinha um codinome nos anos de chumbo: mãos de fada. Era um apelido engraçado que frisava as suas atividades naquela época, a tortura. Diziam que ele era bom, que podia fazer qualquer um falar. O delegado tinha uma técnica e carinho especial com os testículos dos homens. Dava choque, espremia, batia. Acho que ele gostava muito da atividade, mas quando o regime começou a ruir, a agência o ajudou a esconder seu passado, como fez com muitos torturadores e colaboradores. Pelo jeito, tinham feito o trabalho direitinho porque ele conseguiu chegar ao atual cargo e ninguém o incomodou.

Pedi para falar com ele. Dei meu nome ao atendente, esperando que ele se lembrasse dos velhos tempos. Sabia que ele não ficaria feliz em me ver, mas esperava que o medo o fizesse me receber. O atendente voltou e me disse que o delegado estava ocupado e que eu marcasse uma hora. Resolvi esperar em um bar da esquina até que ele fosse almoçar. Era uma aposta. Fiquei esperando umas duas horas, mas ele acabou saindo da delegacia, acompanhado de outro policial. Tinha envelhecido é claro, perdido cabelos e ficado mais gordo como todo mundo, mas ainda tinha os mesmos gestos e jeito de andar. Atravessei a rua e o abordei. – Olá, delegado. Quer dizer que você não tem mais tempo para os velhos amigos?

Ele empalideceu. Ficou sem ação por alguns segundos, como se tivesse visto um fantasma. O policial que o acompanhava o cutucou e ele acordou do transe. O delegado deu um jeito de dispensá-lo e me chamou para tomar um café, amigavelmente mentindo. Nos afastamos da delegacia e ele começou a falar. – Vargas, há quanto tempo. Todos esses anos e nunca mais tive notícias suas...como tem passado?

Eu respondi. – Bem. Estou aposentado e aproveitando a vida.

Ele sorriu sem graça e perguntou. – Então, o que te traz aqui? Se meteu em alguma encrenca?

Eu soltei uma pequena risada e respondi. – Não, longe disso. Escuta, estou precisando de um favor seu. Aconteceu um desaparecimento no meu prédio. Uma garota foi raptada e nada foi feito para descobrir seu paradeiro. O caso está aqui no seu DP. Eu gostaria de ver os arquivos do caso.

O delegado estranhou o pedido, mas respondeu rápido. – Vargas, você sabe que eu não posso fazer isso. Imagina que eu vou te apresentar a investigação sigilosa assim, só porque te deu na telha de ser detetive. O que está acontecendo?

Expliquei a história toda enquanto andávamos. Fui o mais rápido possível porque ele estava louco para se livrar de mim. Ele falou. – Esquece essa história, Vargas. Isso deve ser uma bobeira de mulher e você não tem nada com isso. E além do mais, se o corpo dela não aparecer, não tem jogo. Agora deixa eu ir que estou morrendo de fome.

Ele me deu a mão para se despedir, mas eu não estendi a minha. Falei. – Mãos de fada, que é isso? Não acredito que vai recusar um pequeno pedido de um amigo de tantos anos. E, além disso, ninguém vai se importar se você me deixar dar uma olhadinha nos arquivos. Era só uma mulher boba, como você disse.

Ele esfregou a cabeça e entendeu que o ameaçava. Eu continuei. – Não faça drama, não é como se você fosse fazer algo de sério. Não como nos velhos tempos.

Sentindo que ele estava acuado, pus meu braço em seu ombro e falei. – Vamos lá, procure o arquivo e você nunca mais vai ouvir falar de mim. E antes que eu me esqueça, preciso que você me deixe ver outro caso de outra mulher boba morta em 2007. Ela foi a única morta aqui na região no ano.

Ele estava perplexo e perguntou. – Por que tudo isso? O que está procurando?

Eu respondi. – Nada, só satisfaça aos caprichos de um velho amigo.

Dei meu telefone e pedi que me ligasse quando tivesse tudo em suas mãos. Cumprimentei-o e fui embora. Espero que não tenha que voltar a pressioná-lo, não suporto o porco. Defensor de “revolução” com os bagos dos outros.

sábado, 21 de março de 2009

UM ALIADO PODEROSO

Fico admirado com a Internet. Que coisa maravilhosa, coloca todas as informações do mundo à nossa disposição. Descobri onde trabalham os meus antigos contatos policiais. Um deles progrediu na vida e se tornou chefe do distrito da região, para facilitar ainda mais a minha vida. Foi um presente dos deuses, pois eu conheço muito bem a sua história e posso usá-la a meu favor.

Também acabei encontrando o Núcleo de Estudos da Violência da Universidade de São Paulo. Eles têm mapeadas todas as mortes ocorridas na cidade, divididas por região e sexo, desde 2004. Procurei pelos assassinatos de mulheres na região da República e só encontrei um registro de morte no ano de 2007. Fiquei pensativo, pois os dados não mostravam um predador agindo na região, mas não descartavam a hipótese. Para confirmar a história, preciso ir à polícia e ver o que eles sabem. Quero ver as fichas do caso de Júlia e dessa mulher morta em 2007. Pode ser uma pista valiosa.

quarta-feira, 18 de março de 2009

MULHERES DESCARTÁVEIS

O telefonema de Suelen finalmente veio. Ele se desculpou pela demora, mas disse que tinha conseguido alguém para falar comigo. Pelo telefone, disse que era para eu me encontrar com uma cafetina da região chamada Janice. Aprontei-me e encontrei a figura durante a tarde, em um barzinho de esquina da General Jardim. Nem tive muito tempo para me aprontar. No horário combinado eu estava em frente ao bar, apenas a algumas quadras do meu apartamento. A porta de vidro e os azulejos cinzas do lugar atraiam os tipos mais finos da escória da região. A cafetina estava sentada bebendo cerveja ao lado de um tipo magricelo. Ela usava óculos escuros, boné, camiseta sem mangas e bermuda. Tinha uma grande corrente de prata no pescoço. Atravessei a rua e entrei no bar. Pedi um copo de água ao atendente e me aproximei da mulher. Apresentei-me. – Boa tarde, você é a Janice? Meu nome é Vargas e vim por meio da Suelen.

Ela ficou um pouco desconfiada, mas se lembrou do assunto. Janice se levantou para me cumprimentar e pediu ao magrelo que se levantasse para eu sentar. O homem saiu meio contrariado, mas de cabeça baixa. Ela falou. – Por favor, seu Vargas. Suelen me contou o caso e gostaria de lhe ajudar. Meus sentimentos e pode contar comigo no que precisar.

Eu agradeci. - Obrigado, dona Janice. Gostaria de te pedir ajuda para encontrar minha filha. Só quero saber da verdade, nada mais.

Ela bebeu no copo de cerveja e perguntou. – Eu sei que é muito difícil o senhor vir aqui e me perguntar se ela trabalhava para mim, mas posso lhe assegurar que ela nunca trabalhou aqui na região. E olha que eu estou nesse ramo há muito tempo. Também andei perguntando na região e ninguém sabe de nada. Acho que o senhor deve considerar outras coisas. Um namorado, um assalto, seqüestro. Desses lados pode acontecer de tudo.

Calei-me um pouco e fiquei olhando para o chão. Disse. – Sabe, a Suelen falou um negócio que não sai da minha cabeça. Pode ter acontecido um monte de coisas mesmo, mas você sabe se existe um homem rondando as meninas? Alguma morte aconteceu, ou alguma garota desapareceu como no caso da minha filha?

A mulher coçou a cabeça. - No meio do mundo da prostituição, sempre existe um personagem como esse. O que é mais fácil que matar uma prostituta? Uma criatura segregada, que é paga para satisfazer as necessidades e os desejos mais doentios dos homens. Vivem por aí...na vida! São odiadas, até cospem em suas caras. Esse tipo, matador de mulheres, eu já vi muitos. Estão sempre rondando o meu negócio. São do tipo imprevisível, às vezes matam muitas, tem uma sede de sangue insaciável...outros matam uma, duas. Podem até sair impunes se não derem muita bandeira. O problema é que ninguém se importa.

Ela deu um gole na cerveja e continuou. - Sabe, eu rezo. Sou devota de Nossa Senhora, como todo mundo. Eu rezo pelo meu dinheiro no bolso, pelas garotas, e até pelos pais de família que usam os serviços das meninas. Por eles, eu peço a Deus. Geralmente as coisas são tranqüilas, ninguém se intromete nos negócios e todo mundo sai feliz. As autoridades fingem que não vêem e nós que não existimos. Continuamos com a vida até algum escândalo acontecer. Algum moralista zé-provinho começa a reclamar ou surge um desses matadores de prostitutas. Os dois já me causaram muito prejuízo.

Eu falei. – Dona Janice, eu tenho medo que um tipo doente desses a tenha pego. Quem sabe o que ele poderia fazer com ela?

Ela deu um gole na cerveja. – É, pode ter acontecido. Mas a Suelen me falou que o homem entrou no apartamento e a seqüestrou. Será possível que um desses loucos tenha se dado todo esse trabalho quando poderia matar simplesmente uma das meninas da noite, como normalmente acontece. É muito mais fácil, com certeza.

Janice tinha razão e a história se complicava mais ainda. Eu não queria, mas vou ter que usar meus velhos contatos na Polícia Civil de São Paulo. Só que antes, preciso descobrir quais ainda estão vivos.

terça-feira, 17 de março de 2009

VOLTA PELO CENTRO

Essa noite eu não agüentei ficar em casa, estava apreensivo demais. Suelen não apareceu no ponto. Eu precisava fazer alguma coisa para me acalmar por isso resolvi dar um volta, a pé mesmo. Andei em direção à Praça da República, onde vi um táxi passando vagarosamente. Dentro dele, o taxista mantinha um rosto em alerta, esperando que alguém acenasse para ele parar. Ele, como todos nesta região, tentava escolher seus clientes com cuidado, afinal, sua próxima corrida poderia acabar o matando. A cena me fez lembrar do taxista que eu usava sempre que precisava me locomover de carro. Seu nome era Valdir e ele é do tipo conversador, do tipo que sabe a história de tudo e todo mundo. Tinha muitos anos de profissão na região e com sua ajuda eu poderia saber o que se falava e temia nas ruas.

Encontrei Valdir em seu ponto de táxi. Estava sentado no escuro, dentro de seu carro, em um cruzamento mal iluminado da Consolação, perto da Nestor Pestana. Ele observava três jovens moradores de rua que estavam do outro lado da rua. Dois se abrigavam na marquise, sentados e quietos. O terceiro estava na calçada, curvado, olhando fixamente para baixo do carro de Valdir. Ele me reconheceu e sorriu. Abriu a janela do carona e me cumprimentou. Acenei e abaixei para conversar. – Olá, como anda, seu Valdir?

Ele respondeu: - Andando. O que o senhor faz por aqui? Precisa fazer uma corrida?

Eu disse a ele não, mas que gostaria de dar uma volta pelo centro. Ele estranhou, mas ligou o carro quando entrei. O jovem do outro lado continuou olhando. Valdir me olhou e depois para o moleque. – Malditos nóias! Olha esse aí, cheio de cola e perdido totalmente. Vê se pode, seu Vargas? Esse vagabundo está aí há mais de 15 minutos viajando no chão, nem se move. Minha Nossa Senhora!

Valdir então colocou o carro em movimento, sem destino. Ele seguiu pela Xavier de Toledo no sentido da prefeitura. Perguntei-lhe. - Você já devia estar acostumado com essas cenas, típicas da vida na região. Sinceramente não sei como você consegue trabalhar à noite por aqui.

O taxista sorriu. – Sabe como é, preciso pagar as contas. Se eu não trabalho não ganho.

Acenei. – É, mas você devia trabalhar em uma região mais tranqüila.
Ele resignou-se. – O senhor tem razão, mas quem causa os problemas daqui não são os moradores os centro, são os nóias que vem de outro lugar. Eu já conheço a maioria dos loucos, travestis, prostitutas e traficantes da região. Gente finíssima...

Dei-lhe corda. – Aposto que você já viu muita coisa, nessas noites, ou até mesmo durante o dia, porque isso aqui também é feio durante o dia.

Sorriu. – Tenho muita história sim senhor. O importante é respeitar, eu os levo para qualquer lugar, se me pagarem e se comportarem no banco de trás. Por que isso de mau caráter, não tem classe social, nem profissão. Já fui assaltado por branco, preto e mulato. Aqui neste táxi, eu só não fiz parto e nem fui assaltado por japonês.

Nós rimos. Eu pedi para Valdir mudar o rumo e seguir para a Praça da República. Circulamos o lugar e vimos os moradores da praça. Era um lugar bastante populoso, cheio de residentes: idosos, mulheres, crianças, drogados e loucos. Valdir me perguntou. – O senhor já reparou que o povo que mora nessa praça usa as árvores e o meio da praça para se esconder, como se fossem bichos?

Eu acenei com a cabeça e ele disse. - A praça é grande, tem até uma creche. Quando você passa, durante a tarde, os moleques de rua ficam deitados na grama, na sombra das árvores. Elas são grandes e durante o dia faz uma sombra gostosa, mas não dá para ficar ali, marcando, com esses tipos rondando. Os malandros roubam só o suficiente para sobreviver ou se drogar. Caçam e vêem para cá, na praça, para se esconder dentro dela, se misturando com os outros. Eles costumam ficar ali, ao lado da creche. Alguns deles têm a mesma idade dos que estão matriculados na creche, mas já falam que nem malandro.

Concordei com a cabeça. Ele perguntou. – Já demos uma boa volta, vimos a vida noturna, o senhor quer voltar?

Eu respondi que ainda não. Valdir olhou para frente e continuou a dirigir sem rumo. Continuou. – O senhor sabe que eu até que gosto do centro. Acho que me acostumei a tudo aqui. Não digo que não me choco com mais nada, porque isso é mentira, mas tem que ser bem cabeludo para me surpreender.

Perguntei. - Você estava falando que foi assaltado muitas vezes, não é?

Ele acenou. – É. Já contei para o senhor da vez que um ladrão me assaltou com um tijolo e depois me deu com ele na cara?

Sorri. – Contou, lembro que nesse dia você também falou de um assaltante de terno.
Valdir ficou sério. – Rapaz, nesse dia eu achei que fosse morrer. O cara era normal, estava bem vestido, mas tinha algo estranho nele. O cara puxou uma arma e anunciou o assalto. O jeito de ele falar era calmo, muito frio. Quando eu olhei para ele, pelo retrovisor, e vi que ele era o tipo que mata e nem liga. Os nóias matam porque estão loucos de droga e os outros pipocas matam por acidente, mas esse cara era diferente. Dei o dinheiro, andei mais um pouco com ele no carro e depois o deixei em uma esquina. Sabe, nesses anos como taxista eu aprendi a conhecer o olhar das pessoas, só olhando pelo retrovisor. Às vezes, pego um olhar, de relance, mas já entendo o que se passa aí atrás. E aquele cara, seu Vargas, era um matador por natureza.

Eu perguntei. – Pelo retrovisor, você consegue reconhecer um matador de mulheres?

Ele me olhou, com um sorriso sem graça. – Tão preciso assim eu não sou, mas se tivesse algum por aí, eu não teria medo, afinal ele mata só mulheres mesmo.

Continuei. – Mas vocês, taxistas, ficam sabendo quando tem um desses rondando por aí?

Valdir coçou o rosto. – Olha, às vezes, a gente escuta alguma coisa, na conversa de clientes e nos pontos.

Forcei a conversa mais ainda. – Existe um desses rondando por aí?

Valdir estranhou. – Olha, o senhor quer que eu vire e volte já?

O táxi já estava perto da minha rua, mas eu continuei. – Eu acho que existe um homem assim, rondando a região. Ele está matando as mulheres da região.

O taxista se concentrou na direção. – Eu sempre escuto muitas histórias, mas não sei se são de verdade ou só lendas. Esse tipo de história é comum, sempre tem um louco à solta. Mas por que essa insistência, seu Vargas?

Concentrei-me na rua na minha frente. – Aconteceu uma morte, minha vizinha foi assassinada. Acho que ainda estou meio perturbado. A moça na verdade está desaparecida, mas sei que ela está morta.

Valdir decidiu subir a Consolação, rumo à Paulista. Ele parecia desconcertado. – O senhor não devia estar se preocupando com essas coisas. Se a polícia falou que ela sumiu, deixa como está. Quem sabe no que essa mulher se meteu?

Eu me calei e considerei o fato. Eu conhecia a polícia, mas não sabia muita coisa sobre Júlia. A síndica havia me contado sobre a fuga do nordeste e a vida difícil da garota, mas talvez a realidade fosse outra. Comecei a me perguntar quem realmente era Júlia. O taxista me deixou em casa e eu fui dormir ainda incomodado com as minhas perguntas.

segunda-feira, 16 de março de 2009

LAMENTAÇÕES DA ESPERA

Enquanto espero Suelen ligar, contando notícias do encontro que ele vai marcar, fico pensando na história toda. Eu não sabia quem era Júlia, nem ficava controlando seus horários como a síndica fofoqueira. Quem sabe ela não fizesse programas ou estivesse envolvida com algum homem perigoso? Espero que o contato de Suelen me ajude a esclarecer alguma coisa sobre Júlia. Eu preferia resolver este assunto sem ter que contar com a ajuda da Polícia Civil e meus velhos conhecidos.

Também passei bastante tempo imaginando que tipo de homem seria o seqüestrador de Júlia. Devia ser muito frio e ter um grande autocontrole. Para entrar em um prédio, raptar a moça de dentro do próprio apartamento, e ainda fazer isso sozinho, seria necessário um tipo especial de homem. Alguém sem medo. Ele se arriscou muito em uma operação desse tipo. Algo em Júlia deve ter despertado o seu lado mais sombrio e transformou a garota em alvo de suas ações.

Espero que o contato de Suelen acabe logo com a história e me de uma resposta logo. Apesar de eu ser aposentado, não quero prender minha vida a essa tragédia. De dor e drama eu já tenho recordações demais, não precisa de mais uma. Só quero esquecer o que aconteceu...por que será que o fantasma de Júlia não me deixa em paz?

Se Suelen não me ligar até quarta-feira eu vou conversar com ele de novo.

sábado, 14 de março de 2009

HOMEM/MULHER

Nos dias seguintes fiquei pensando o que teria causado tanto desconforto a Suelen. Acho que ele estava cheio de remorso, mas havia outra coisa. Precisava ir de novo conversar com o travesti. Esperei anoitecer e Suelen chegar ao seu ponto costumeiro, que eu podia ver da minha janela. Quando ele finalmente apareceu, resolvi lhe fazer algumas perguntas antes de seus clientes chegarem. Abri a porta e atravessei a rua para encontrá-lo. Quando me percebeu tentou disfarçar. Aproximei-me. - Podemos conversar?

Ele olhou para os lados e acenou com a cabeça, vencido. Fomos para o hotel e ao invés de subir, seguimos para um quarto nos fundos da espelunca. Nos sentamos em um sofá bem antigo e perguntei. – Você está bem?

O travesti parecia cansando e disse. – Sabe, eu estou farto desse lugar. Da sujeira, da violência, da pobreza, das mortes. O centro só atrai tristeza e desde que estou aqui, só faço é sofrer. Eu e todo mundo que mora aqui.

Acendeu um cigarro e me ofereceu. Aceitei e ele continuou falando. – Sabe, fiquei mexida com a história da sua filha. As garotas que trabalham na noite estão sempre desaparecendo, por vários motivos: mudam de cafetão, de área, ou simplesmente fogem disso tudo e tentam recomeçar a vida em outro lugar. Na maioria das vezes, ninguém fica sabendo o motivo, muitas nem tem ninguém para quem contar. São descartáveis...

Suelen parou de divagar e ficou olhando o cigarro. Falei. – Escute, fiquei intrigado com o que você falou da última vez. Você disse “mais uma garota morreu”? Tem acontecido com freqüência?

Ele olhou para mim e falou. – Como eu disse, as garotas daqui sempre somem, por um motivo ou outro. De qualquer jeito, ninguém quer ficar nessa merda de lugar.

Eu perguntei. – Mas quem era a garota que morreu?

O travesti virou o rosto. – Uma amiga. Não faz muito tempo, um cliente a pegou de carro em um ponto aqui perto. Ela nunca mais apareceu. Deve estar morta em algum canto. Não tinha família nem ninguém para procurar por ela. Não fez falta, a não ser para mim...

Ele se calou por um instante e depois perguntou. - Mas por que o senhor quer saber isso? A minha amiga era prostituta. A sua filha era trabalhadora, não era?

Respondi que sim com a cabeça. Me calei um instante, pensando como ele sabia que Júlia trabalhava. Acho que Suelen já havia notado a minha vizinha, quando ela voltava do trabalho. Será que observava a vida de Júlia enquanto os clientes não chegavam? Falei. – Ela trabalhava em um supermercado aqui perto, pelo que sei era honesta. Acho que não tinha nem namorado.

O homem me olhou desconfiado e disse. – O senhor não sabe por onde a sua filha andava? Até parece que o senhor nem a conhecia.

Eu baixei a cabeça e respondi. – Às vezes, pais e filhos não se dão bem e nem mesmo se conhecem. Digamos que eu e Júlia dividíamos o mesmo espaço, não nossas intimidades.

Suelen não me perguntou mais nada, constrangido. Eu também não continuei o assunto, deixando-o interpretar a situação do jeito que quisesse, do jeito que servisse sua consciência. Perguntei. – Será que ela poderia estar envolvida com prostituição?

Ele deu um grande trago no cigarro e falou. – Olha, na minha experiência isso não é incomum. Algumas mulheres em dificuldade fazem alguns programas para completar a renda. Mas, sinceramente, nunca vi a sua filha por aí.

Não me conti e perguntei imediatamente. – Você sabe me dizer quem poderia confirmar isso?

O travesti ficou surpreso e comentou. – Olha, ela não devia fazer programa. O senhor precisa descobrir se ela não tinha um namorado escondido e acabou fugindo com ele. Talvez eu tenha me enganado e não foi medo que eu vi em seu rosto. Eu sei que é duro ouvir isso, mas vai saber? O senhor a impedia de namorar?

Absorvi a pergunta e considerei. – Não. Mas acho que ela não me contaria se tivesse um namorado.

Suelen terminou o cigarro. – Bom, acho que já vou indo. Infelizmente, não posso ajudar o senhor em mais nada. Espero que você ache a garota.

Ele se levantou e foi rumo à porta. Eu o segui e perguntei. – Por favor, eu preciso confirmar se ela não estava fazendo programas. Nós andamos passando por dificuldades e acho que ela não faria isso, mas preciso ter certeza. Você conhece alguém que possa me ajudar?

O homem lamentou. – Prefiro não me envolver mais. Desculpa, mas isso não vai ajudar em nada. Procure a polícia e fique na cola deles, quem sabe você não descobre algo.

O travesti se virou e entrou no corredor, em direção a saída do hotel. Eu o segui na esperança de que se o pressionasse, ele ajudaria. Tinha que usar seu sentimento de culpa. – Por favor, ninguém vai me ajudar. As pessoas não se importam. Eu preciso que você me ajude.

Olhei em seus olhos, profundamente. Ele ficou desconcertado e pensou por alguns instantes. – Talvez eu possa te apresentar alguém que conheça as meninas da região. Não sei se ela ajudaria.

Eu disse. - Por favor, tente. Eu não tenho mais a quem recorrer.

Dei meu telefone a Suelen e disse que esperaria seu contato. Ele guardou o papel com o telefone na bolsa e foi embora. Agora é só esperar.

quinta-feira, 12 de março de 2009

NOITES PAULISTANAS

Passei duas noites em frente à janela, observando o travesti. Ele sempre esteve do outro lado da rua desde que me mudei, há cinco anos, após minha aposentadoria como funcionário público. Era exibicionista e mostrava seus enormes seios falsos de silicone, mesmo nas noites mais frias de São Paulo. Ficava só de calcinha na esquina, chocando os passantes e atraindo muitos clientes. Pais de família, em sua maioria...

Ele poderia ter visto o rapto e quem sabe até o rosto do seqüestrador. Eu passei duas noites tomando coragem para procurá-lo. Nem imaginava como começaria o assunto e pensava que o travesti nunca concordaria em falar. Mas não tinha jeito, a quem eu iria recorrer? Tomei coragem, vesti meu casaco e sem hesitação sai pela porta. Fui tomado por uma estranha energia nesta noite, era confiança. Um sentimento verdadeiro me inundou e me rendi a ele. Não me reprimi mais e fui ao encontro do homem/mulher. Eu conseguiria tirar algo dele, a qualquer custo.
Abri a porta do meu prédio e tentei disfarçar, mas ele me viu assim que eu coloquei o pé para fora. Ainda fingi estar perdido, sem saber em que direção seguir. Olhei para um lado, depois para o outro. Quando me senti confortável atravessei a rua e aproximei-me, sem nunca encará-lo. Ele estava solitário em seu ponto. – Com licença, eu gostaria de conversar com você. É um assunto particular.
O travesti me olhou, medindo de cima a baixo, e falou com sua voz anasalada, em tom jocoso. - Olha, para conversar em particular custa R$ 50. Tem um hotel aqui perto que a gente pode usar para bater um papo.
Sabia o que ele imaginava de mim, que eu queria satisfazer algum prazer doente e anormal, mas acenei com a cabeça e seguimos calados para o hotel. O lugar era algumas casas adiante e logo me vi no balcão da pocilga ao lado do travesti. O atendente recebeu o dinheiro do quarto e liberou a suíte 12 para Suelen. Subimos um lance de escada e entramos no quarto equipado com banheiro e ar-condicionado, com vista para a rua. Ele fechou a porta e seguimos alguns instantes intermináveis em silêncio. Suelen perguntou, meio sem graça. - Desculpa perguntar, mas o senhor é virgem de travesti?
Eu respondi desnorteado. - Sim, eu nunca estive, nunca fiz com um...
O homem foi solidário. - Não se preocupe não, eu já tive um caso ou dois, igual ao seu. O senhor prefere levar ou tomar?
Eu saí do meu transe envergonhado pela sua frase. Recuperei os sentidos e falei que não estava procurando sexo. Ele não entendeu. Tirou o casaco, expôs seus seios e perguntou. - Vamos deitar? Apaga a luz para ficar melhor.
Continuei ali parado que nem uma estátua, em pé. Tentei falar de novo. - Você não percebe? Eu só vim aqui para saber de algo. Por favor, coloque o casaco e vamos conversar.
Suelen ficou ofendido e não fez questão de disfarçar. Logo disparou. - Que merda é essa, que tipo de esquisito é você? Afinal qual é a sua, seu pervertido?

Argumentei com ele. - Por favor, só preciso saber o que você viu há quatro semanas. Uma moça foi seqüestrada no prédio em frente ao seu ponto. Preciso que se lembre desse dia.

Suelen não entendeu e não quis nem saber das minhas perguntas. Começou a juntar suas coisas e venho em minha direção, na direção da porta. Eu supliquei. Segurei-o pelos braços e pedi. – Me ajude, eu preciso saber o que você viu naquela noite. Quem levou a garota?

Ele ficou perturbado com a pergunta e tentou se soltar. –Pára com essa maluquice, eu não vi nada, não sei de nada. Me larga.
Ele me empurrou e tentou abrir a porta. Eu continuei segurando seu braço. Suelen me olhou e perguntou: - Por que você quer saber, o que te interessa?

Eu, sem resposta, disse a primeira coisa que veio a minha cabeça. - Eu sou o pai dela.

A resposta o desarmou. Ele ficou em silêncio por um momento, tentando se recompor. As minhas palavras mexeram com Suelen, eu podia ver em seu rosto. Ele se sentou na cama, calado, procurando se acalmar. Eu recomecei. -Por favor, um homem levou a garota, entrou no apartamento e a seqüestrou. Foi em um domingo chuvoso, eu preciso que você se lembre do começo dessa noite.

Ele tirou a peruca revelando seus cabelos curtos e pretos. Falou. – E o senhor espera que eu me lembre de um dia, depois de todo esse tempo?
Colocou a mão sobre os olhos e sentou na cama. Dizia baixinho palavras desconexas e sussurradas. Ele tirou a mão dos olhos e começou a organizar melhor os fatos daquele dia. Falou hesitante. – Eu me lembro de uma garota, com o rosto cheio de medo sendo levada por um homem. Ele era mulato e estava vestido de um jeito comum, tinha um boné. Colocou ela em um carro preto e saíram.
Perguntei se o homem era alto e qual era o seu carro. Respondeu. – Não, tinha uma altura média e o carro...não me lembro. Não conheço muito disso, mas era um desses comuns. Mas lembro que ele segurava o braço dela com as duas mãos. Ela ia indo, sendo levada por ele, mas eu nem pensei em nada.

Continuei perguntando se a polícia o havia questionado e ele disse não, que até evitou contato com os investigadores. Levantou-se e disse. - Vamos sair daqui. Esse quarto está ficando pequeno.
Pegou sua bolsa e abriu a porta. No começo não entendi sua atitude, mas depois percebi que talvez estivesse se sentindo culpado. Suelen me convidou para ir a um bar ali perto. Meio contrariado, acabei indo para não perder a pista. Fomos caminhando lado a lado até o bar e restaurante, há dois quarteirões do hotel. Suelen chegou fumando um cigarro que tinha acendido no meio do caminho. Pediu uma bebida: uma vodka com gelo. Sentei e tentei conversar mais um pouco, mas não consegui tirar nada dele. No meio de meus questionamentos, ele simplesmente se levantou e disse. – A coisa por aqui está feia. Mataram mais uma menina, dessa vez foi sua filha, mas quem será a próxima? Essa região é cercada por malucos mesmo!

O travesti estava inquieto. Levantou e deixou cinco reais em cima do balcão. – Escuta, eu sei que é sua filha, mas deixa a polícia cuidar disso. Quem sabe dessa vez, por um milagre, eles não acham ela.

Suelen deu as costas e voltou para seu ponto. Eu fiquei lá sentado no bar, tentando digerir o que tinha acontecido. A descrição do suspeito não ajudava, pois ele descreveu o tipo médio brasileiro, podia ser qualquer um. Mas por que será que ele disse “mataram mais uma menina”? Será que tem algo acontecendo nas ruas da República?

terça-feira, 10 de março de 2009

PROCURANDO POR RESPOSTAS

Acordei ainda perturbado pelo remédio para dormir. O fantasma de Júlia tinha vencido. Quando me levantei, ainda assustado por um sonho com ela e desorientado pelo sonífero, sabia que estava condenado. Já de pé, em frente ao espelho, lavando o rosto, as pernas me falharam. Segurei a pia. O espírito de Júlia me atormentaria para sempre, se eu não fizesse nada. Terminei de me arrumar, tomei um café e fui conversar com a síndica do prédio, dona Antonia.

É uma senhora que já passa dos 60, assim como eu, mas faz força para parecer 50. Sempre vaidosa, nunca deixa os outros a verem sem maquiagem ou mal vestida. Bati em sua porta no final da manhã. Ela, uma aposentada, não estava muito ocupada. Abriu a porta e me recebeu com cortesia, diria até com gosto. Convidou-me a entrar e serviu um café passado na hora. Conversamos as amenidades de sempre, o tempo, a vizinhança, o governo. Procurei uma brecha para falar do assunto, mas ela matraqueava sem parar. Quando um daqueles momentos de silêncio se abateu sobre a conversa, perguntei sobre a garota, minha vizinha. No começo ela não me deu muitas informações e comentou que a garota não falava muito de nada. Dona Antonia desconversou um pouco, chamou de tragédia. Disse que Júlia tinha fugido de uma cidadezinha no Nordeste, uma daquelas perdidas no deserto, para tentar a vida aqui. Ela achava que a garota estava em São Paulo há alguns anos porque já havia perdido um pouco do “sutaque”. A mulher também sabia que a vizinha trabalhava em um supermercado, próximo ao Minhocão, desde que morava no prédio. Depois disso, partiu para a especulação. – Você sabe como são essas garotas de hoje em dia? Provavelmente trouxe a desgraça sobre si.

Ela falou com certo prazer, percebi. Era como se sua castidade e velhos costumes a protegessem de todos ao males. Após um breve discurso sobre pureza, castidade, moralidade e outras sandices sem sentido, nada mais para reafirmar suas próprias idéias, ficou interessada nos motivos das minhas perguntas. Tentei esconder meu asco por suas palavras, mas não consegui. Seria fácil disfarçar, como outras tantas mentiras da vida comum, mas não consegui. Ela sorriu maliciosamente e me perguntou. – Todo mundo gosta delas novinhas, não é seu bode velho? Vocês homens são todos iguais, se fosse uma velha ninguém ligaria.

Eu não respondi. Levantei-me, sem graça, e sai. Ela fechou a porta atrás de mim, ainda mais amarga do que já era. Voltei para o meu apartamento, sem ter a quem recorrer. Ao anoitecer, sentei próximo à janela e vi quem poderia me ajudar. Ele fazia ponto todas às noites no mesmo lugar, do outro lado da rua, e poderia ter visto algo. Era minha única opção.

segunda-feira, 9 de março de 2009

UM COMEÇO


Escrevo porque preciso. Um crime aconteceu e ninguém fez nada para puni-lo. Apenas eu persigo a verdade, por isso vocês terão que acreditar em mim. Uma garota desapareceu aqui no centro da cidade de São Paulo, levada por um homem que invadiu seu apartamento, ao lado do meu, em um pequeno prédio da rua General Jardim. Foi em um final de noite, há quatro semanas. Apesar da gritaria e desespero da moça, que implorava por ajuda, ninguém fez nada para impedir, inclusive eu. Nós viramos as costas, como sempre, e ela se foi. Seu nome era Júlia.

A síndica do prédio, dois dias depois do crime, deu queixa. Registrou o acontecido em um boletim de ocorrência na delegacia da região, como manda a lei. Os policiais não fizeram nada. Ontem, a locadora do apartamento onde a garota vivia, recolheu seus pertences e os encaixotou, como se a enterrasse por definitivo. Quando desocuparam o seu pequeno quarto e sala, sabia o que algo terrível tinha acontecido e que ninguém se importava. Júlia não voltaria.
Não sei muito sobre ela. Tinha uma beleza rural, nordestina, mas era bonita. Sempre a via de cabelos presos e com maquiagem discreta. Seu olhar era furtivo e evitava encarar. Era uma garota tímida. Alugou o apartamento ao lado do meu, há cerca de um ano, e assim fomos vizinhos discretos, nunca trocando mais que poucas palavras. Não a conhecia, essa é a verdade, mas não me furto à responsabilidade de sua vida. Desde ontem seus gritos andam me atormentando, mais do que o comum. Tive até que tomar remédio para conseguir dormir. Para mim ela continua gritando no apartamento ao lado e decidi que ela precisava de descanso, e eu também. Amanhã vou ver a síndica do prédio para tentar saber um pouco mais sobre o caso. Essa história precisa de um fim, por mim e por Júlia.